sexta-feira, março 19, 2010












O poeta que viveu na rua




"Teresa Lima
Publico. Portugal, 22 de outubro

Não ter medo de ir até ao limite do ser? Ou antes, não ser capaz de resistir ao abismo? Escolher uma liberdade total? Ou desistir de lutar por uma vida de afectos?... Perguntas que não poderão ter respostas objectivas. Sebastião Alba é poeta e morreu atropelado. Viveu quase vinte anos nas ruas de Braga. Porque quis? Ou porque a vida não lhe deu outra opção?

Depois de ter tomado um copo no bar da CP, em Braga, encaminhou-se para a linha, onde o comboio aguardava vez para arrancar. Eram talvez sete da manhã. Tocou no braço do amigo antes de este entrar na máquina e arranjou-lhe o nó da gravata. Já o podia deixar partir. Ele por ali ficou, com as roupas desalinhadas e o rosto de mendigo.
Sebastião Alba, o pseudómino de Dinis Carneiro Gonçalves, foi uma das últimas vítimas conhecidas de atropelamento em Braga. Morreu há oito dias, segundo versão oficial, na rodovia, junto à Bracalândia. Ironia do destino, costumava dizer que morreria de muita coisa, mas nunca atropelado. A vida acabou na sequência de um embate com "um selvagem motorizado" (assim apelidava os condutores), que se pôs em fuga. Sebastião Alba é (porque estes não morrem) poeta, e foi um sem-abrigo por opção. "Fui/ hóspede desta mansão/ na encruzilhada/ dos meus sentidos", escreveu num dos seus poemas, um dos que lhe valeram o prémio literário ITF. O dinheiro do prémio teve o mesmo destino que os direitos de autor pelos livros editados: as duas filhas. Há quase vinte anos que vivia nas ruas de Braga e fazia-o com a perfeita consciência de quem assume uma ruptura total com o mundo.
Para muitos, Sebastião Alba não era mais do que o mendigo que se metia com as pessoas na paragem do autocarro. Algumas desconfiavam de tanta marginalidade, mas outras foram aprendendo a conhecê-lo e a dar-lhe uns "bons dias" casuais. "É esta a imagem que tenho dele: na paragem do autocarro", conta Henrique Barreto Nunes, director da Biblioteca Pública de Braga. "Parecia ser um homem de uma profunda amargura com a vida, mas que se encantava com a música, as crianças, a beleza de uma mulher".
"É um poeta da alma, no sentido em que a vida e a poesia lutam entre si", pormenoriza o actor António Fonseca, que ocasionalmente se cruzou com Alba na rua. Também Fonseca sublinha esse encanto "adolescente", que persistia em Sebastião Alba, apesar do voltar de costas a uma vida dita normal. Andava sempre acompanhado de uma garrafa, uma harmónica e um rádio "sintonizado na Antena 2", lembra José Manuel Mendes, presidente da Associação Portuguesa de Escritores (APE), que acompanhou muito de perto os últimos anos do poeta.
O mais surpreendente em Sebastião Alba talvez seja isto mesmo. Rompeu com o mundo, mas continuou a acompanhar as notícias. Ocupava o pensamento com "compassos inteiros de música e trechos do Zaratrusta", recorda Mendes. O Super-Homem de Nietszche terá vencido em Alba? Poder-se-á ser livre, totalmente livre, sem amarras? "O Alba é alguém que andava liberto de quaisquer teias, ainda que levasse uma existência que não era de felicidade", considera o presidente da APE. "Era livre porque não se sentia condicionado por nenhum mecanismo moral", assume Barreto Nunes. "A maior parte das pessoas foge a ser assim e refugia-se noutras coisas", completa António Fonseca.
Sebastião Alba era o poeta marginal total. Em 1996, escrevinhou ao seu amigo e também poeta Vergílio Alberto Vieira: "Fui longe de mais dentro de mim". Talvez seja esta a frase que melhor sintetiza a sua vida. "Ele tinha a consciência de que o facto de ter enveredado pelo alcoolismo, de viver só e no submundo, era ir longe de mais", admite Vieira. "Nesta escolha, há uma imensa carga de contradição, de que ele era mais vítima do que sujeito". Guarda fielmente um emaranhado de papéis, "escritos sei lá em que condições", do seu amigo. Estas folhas eram deixadas repetidamente por Alba na sua caixa do correio. Muitas dessas palavras poderão, um dia, ser ordenadas em páginas limpas e desenrugadas. É esta, pelo menos, a esperança do poeta bracarense. Aguarda-se que as instituições se interessem genuinamente por uma obra desconhecida. Enquanto tal não acontece, a editora Campo das Letras, do Porto, promete editar uma antologia da obra de Sebastião Alba, que escrevia "com uma lucidez de cortar à faca", resume Vergílio Alberto Vieira.

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