sexta-feira, maio 07, 2010

Texto reproduzido da Revista "Estudo Geral"

Via Láctea



por

Abdul Cadre

O professor Agostinho da Silva, um homem que veio do futuro e possuía dupla nacionalidade (portuguesa e brasileira) COSTUMAVA DIZER que somos estrelas de incomparável brilho. Que pena, termos tanta dificuldade em acreditar nisto. E, no entanto, o brilho vê-se nos olhos quando o peito arde sem constrangimentos.

Mas eis que se torna uma necessidade permanente avivar a chama, visitar o interior, varrer as cinzas e encher o lugar de alegria.
É no mais profundo do peito que nascem e morrem todos os sentimentos. As lágrimas podem lavá-los, mas também molham os bagos de amor que são os carvões da fogueira que nos permite brilhar, prejudicam a combustão, enchem de fumo o nosso entendimento e a tristeza vem e ofusca-nos o olhar.
Ver no outro o brilho verdadeiro que em nós imaginamos chama-se EUCARISTIA – palavra derivada do grego, com o significado etimológico de «o bem do amor» –, sendo que o amor não é nem nunca foi o que o homem pós-moderno diz, mas aquilo em que ele não quer acreditar. É por isso que falar de fazer amor, como se amor fosse artesanato, confundindo apelos da alma (que traz amordaçada) com ânsias da carne (que traz à rédea solta); dar-se ao outro pelo outro é-lhe completamente incompreensível. O TER infectou-o tanto por dentro que o SER, cada vez mais angustiado, se afasta cabisbaixo pela estrada da mágoa e da tristeza.

O amor – não uma sua qualquer particular manifestação menor – é a negação da morte, como se diz com mestria no soneto de Antero de Quental intitulado «Mors – Amor», quando o corcel negro diz «eu sou a morte» e o cavaleiro lhe responde: «eu sou o amor».

É certo que no preciso momento em que nascemos começamos a morrer e que em todos os dias desta nossa peregrinação nascemos e morremos continuamente. Afinal, viver talvez seja matar a morte de cada dia.
Quando as estrelas, em vez de brilharem, se ofuscam, tendem a colapsar sobre si mesmas. É isto que acontece ao homem preocupado apenas com o seu umbigo. Ávido de prazer, ele desconhece a alegria e julga poder afastar a dor; não pode, a dor é uma inevitabilidade, o que é opcional é o sofrimento, que é o carrasco da alegria.

Como imagem para o nosso colapso de estrelas que não ousam sê-lo, olhemos algo que se pôs de moda, fazer implodir velhos edifícios para dar lugar a outros, presumidamente melhores. O colapso do homem velho seria, nesta condição, uma coisa boa, isto é, se melhor construção viesse, mas enquanto vivermos de fora para dentro, tenhamos a certeza que nem aos caboucos meteremos ferro, antes veremos embargada a construção do homem novo, tão desejada em tempos de exaltação, tão tumular em tempos de apatia. A construção do homem novo, daquele que há-de viver de propósito e brilhar por condição, que viverá de dentro para fora, com o peito a arder, é uma promessa de vida e de futuro.

Podemos antever isso, sempre que em noite amena e estrelada nos deitemos em chão despido, extasiados com a Via Láctea, a que pertencemos.
Publicada por estudo geral

"Estudo Geral

Uma Revista que se pretende livre, tendo até a liberdade de o não ser. Livre na divisa, imprevisível na senha. Este "Estudo Geral", também muito virado à participação local, lembra a fundação da primeira Universidade em Portugal, lá longe no ido século XIII, no reinado de D. Dinis. Conselho Editorial: António Tapadinhas, Diogo Correia, Luís Gomes, Luis Santos, Manuel João Croca e Raul Costa.


Estão participando: Paula Soveral, Abdul Cadre, Margarida Castro, Leonel Coelho, Paulo Borges, Luis Santos, António Tapadinhas, Diogo Correia, Manuel João Croca, Luís Mourinha, Luís Guerreiro, Ângelo Cristóvão, Eduardo Espírito Santo, Raul Costa, Agostinho da Silva, Alexandra Viegas, Luís Gomes, Fernanda Bião, José Miguel, João Raposo Nunes, Chrys Chrystello, Abilio Pacheco. "

Sem comentários: